17.9.15

Calendário, de Daniel Francoy


Daniel Francoy nasceu em 1979 em Ribeirão Preto, cidade do Estado de S. Paulo, onde reside.  Em 2010, trouxe à estampa o livro de poemas Em Cidade Estranha seguido de Retratos de Mulheres, publicado pelas Edições Artefacto. Estas mulheres são jovens, traduzindo garotas no Brasil, miúdas em Portugal, e formam um friso de frescura que tive a sorte de ver formar-se. São poemas escritos em data bastante afastada da publicação, maiormente escritos em 2002, com alguns, poucos, em 2003 e 2004. Na mesma esteira e mais antigo, 20, um poema surpreendente, escrito com 20 anos, é a base do olhar juvenil que informa os retratos das raparigas. Por aqui poderíamos julgar enganosamente que são poemas da juvenília, com o sentido algo depreciativo de coisas da mocidade que por vezes o nome ganha. Este aspecto, é óbvio, não se repete no seu novo livro de poemas, Calendário, editado pela mesma Artefacto no mês passado, tem o poeta trinta e cinco anos, mas esses poemas da juventude chamaram-nos a atenção para o que poderia ser um livro novo de Daniel Francoy. Apesar disso, a semente perdurável, como continuação, encontra-se na primeira parte, Em Cidade Estranha, do livro de estreia.


Que diferença então se nota em Calendário para o seu primeiro livro, o que se lê e sente nele de diverso, que evolução teve o poeta? Uma evolução profunda, com sensível perda da candura (mas não tanto de encantamento) e, de modo total, da ténue e subliminar sentimento religioso que julgo aflorar num ou noutro poema e com o ganho na firmeza dos versos, das palavras, das imagens que já vêm do livro inaugural e se mantêm como ADN do poeta. Dir-se-á que os olhos do autor se turvaram com o avanço dos anos e o afinar da consciência, mesmo quando se refere a sentimentos como a ternura: “Carrego a ternura como um vaso de flores / trazido dos lugares da infância / (a terra apodrecida, as raízes mal cheirosas). / Digo a ternura com um hálito de palavras mortas” [1]. O teor desta intercalação e verso seguinte, bem como o seu tom são marca da poesia de Daniel Francoy, algo impossível de não se reconhecer a autoria: “Saber escavar, escavar sempre / a terra podre e depois escavar / a sombra espessa. Respirar fundo / a noite escura, a noite sem vento, /sem vestígios argênteos do luar / (mesmo um luar imundo, encardido / de poeira e fumo, não se percebe)/e sem murmúrio de mar diluído / nas negras artérias da madrugada. [2] Pode inferir-se que o poeta aspira a algo que não existe, que é da insatisfação resultante do seu embate com o mundo que nascem estas imagens turvas, criando, significantes, o ambiente do poema e o que ele nos diz. Porém, mais do que estas imagens simples, prevalecem as imagens fílmicas, como que encadeadas em fotolitos, de que aquelas com frequência fazem parte, constituindo o guião em que o poema se torna: Tão baixo, possível, familiar, /o luar é apenas sujeira no céu. / Ainda mais abaixo, há grilos, mosquitos, / morcegos, a água barrenta / de um riacho, a doçura/ dos frutos rachados pelos vermes /e também a aspereza/ em rostos que o tempo tratou / como pedra que nunca foi movida./ Não fui uma ave migradora / e há rios que deixam de fluir /sem encontrar algo maior.” [3] Há também nesta linguagem o recurso sinérgico a oposições contraditórias, como escrever que luar é sujidade, lixo, sem que isso nos fira a leitura, porque aumenta a intensidade e se torna uma verdade violenta e inquestionável no poema. E há mais exemplos nos poemas que citei acima, em parte ou no seu todo, sem ter pensado ainda nesta particularidade potenciadora de tensão. A ternura que o poeta carrega  como  um vaso de flores que trouxe da infância contra a terra apodrecida, raízes mal cheirosas, o hálito das palavras mortas; ou sem vestígios argênteos de luar contra um luar imundo, encardido de poeira e fumo; ou ainda a doçura dos frutos contra rachados pelos vermes.


Seria bem pouco limitar a poesia a este aspecto, a este efeito mais visível do tempo em que globalmente vivemos. Sem sair das imagens e descrições fílmicas que é o seu modo de se expressar, Daniel Francoy clareia a escuridade das imagens antes citadas e, vivendo nestes dias, discorre sobre o seu quotidiano, a casa, a casa da avó, os gatos, o amor, o trabalho, a cidade de Ribeirão Preto, com cerca de 666.000 habitantes, quando a cidade do Porto tem perto de 238.000. Esta comparação demográfica serve para justificar a poesia eminentemente urbana de Daniel Francoy, com poemas por vezes terríveis como este que a seguir se  transcreve, em que não está presente o modo expressão que referi, mas um outro igualmente forte que acaba por dominar no livro:

A ventania vem como um cão
atropelado que, ganindo, coxeando,
afasta-se depressa. Vira numa esquina
e o deserto do tempo esvaziado
petrifica-se em meus olhos.
Há uma faixa de sangue coagulado
que se evapora no céu desnudo,
abaixo as ruas sem viva alma
que as percorra: não há um único vulto
de gente, de pássaro ou de árvore
que frature a imobilidade calcinada
ao meio-dia rouco, áspero,
refratário como uma pedra de fogo.[4]


Que se recolhe do poema? Uma extrema solidão urbana no meio-dia de um domingo, dia da semana que o título do poema revela. Este nível de expressão, com imagens comuns do quotidiano e suas sequências, envoltas na surpresa de serem tão novas e únicas, este nível de liguagem, dizia, é maioritário no livro e confere aos poemas um classicismo nobre e contemporâneo. Já ouço os epígonos que não se cansam de macaquear o passado longínquo e os que finjem avantgards no presente – como se as houvesse –, com palavras repetidas como tiques que não enxergam e repisam até ao bocejo mais escancarado, uns e outros juntos em cliques e claques ferozmente inimigas. Daniel Francoy escreve sozinho na cidade imensa e tem força hoje e mais terá amanhã para escrever hinos à alegria como este:

Ainda são os dias em que muito pouco
é ruína – ecoa um sol imenso
na algazarra das cigarras
e a noite de sábado permite
que preparemos coquetéis de verão
e ouçamos Cartola, a sua voz
e o seu samba triste pairando
por entre as samambaias e no entanto
tudo são corpos que ainda
se reconhecem nos espelhos
da juventude e acima de tudo o luar
com a sua oculta voz marítima
rumorejando dentro das artérias
                desta alegria persistente. [5]

Um livro para quem goste de poesia excelente, um livro que faz justiça ao poeta e que honra os editores e quem o leia.



 

[1] - do poema Na Fronteira da Última Cidade, p. 35.
[2] - Saber Escavar, p. 28.
[3] - Dezembro, p. 25.
[4] - Domingo, p. 57.
[5] - Ainda São os Dias em Que muito pouco É Ruína, p. 37.
 
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