5.9.17

Nova Arte de Conceitos, Contos


Nova Arte de Conceitos, Contos, é o livro de estreia de Luís Miguel Rosa (n. Lisboa, 1984. Doravante LMR). Editou-o a Companhia das Ilhas em Julho do corrente ano. 

Esta é a segunda Nova Arte dos Conceitos na literatura portuguesa. O autor, porém, tinha conhecimento da primeira, do século XVIII, de Francisco Leitão Ferreira, que vem acrescentada de Lições no título, como informação ao leitor, tal qual a presente Nova Arte o faz com Contos. Não se trata de um desses acasos que sucedem por desconhecimento, falha de memória ou de vergonha, já que, em vez dos títulos das histórias, identifica cada narrativa no seu início por Lição, numerada em romano, confirmando-se assim a origem voluntária do título adoptado. Em contrapartida, logo na terceira página, o índice dá o título por nomes a cada um dos oito contos de que o volume se compõe

O livro abre com um soneto petrarquiano, formalmente perfeito na métrica, na acentuação tónica e no esquema rimático, intitulado Nota do Autor, em que LMR recusa energicamente, e bem, o Acordo Ortográfico de 1990. Seguem-se-lhe três epígrafes, a mais importante das quais me parece ser a de João Palma-Ferreira, que define as características do Cultismo, adoptado só na aparência pelo autor, bem visível no primeiro conto, ou pelos leitores numa interpretação à letra. Terá sido por isso que vi a obra classificada como barroca (a meu ver, nem sequer ao neobarroco pós-moderno pertence). Por mim, tenho-a por crítica e denúncia dos emaranhados literários como modo de tentar engordar a magreza de certa ficção e poesia dos anos noventa até hoje. Para tal utiliza com frequência características que pertencem ao Barroco, mas apenas se serve delas como meio, não as assumindo. Seria absurdo  se as assumisse quatro séculos depois. Para confirmação do que escrevo, socorro-me da epígrafe que encima cada um dos oito contos, definindo claramente o sentido dos textos respectivos.

Inicia-se assim uma colectânea que é, toda ela, um jogo de ironia, por duas  vezes absorvendo a própria narrativa. Micro-conto é uma delas, com uma deliciosa explicação sobre o dito na página anterior ao texto, abaixo do título Lição II, explicação garantida pela epígrafe respectiva de Francisco Rodrigues Lobo. A explicação e a epígrafe são o que vale, pois não há micro-conto nenhum, apenas um diálogo ao acaso de duas linhas entre um casal, ele num português do Brasil de favela, ela em inglês, impresso na página 53 como que por engano, sem qualquer ligação ao título, mas atado com um nó cego à epígrafe respectiva. O outro conto, que também não o é, cuja narrativa se absorve no jogo simultaneamente lúdico e irónico que percorre o livro, é Neologíase, neologismo que LMR pode ter formado de  neo + log(ia) + íase, que significaria  novo estudo sobre a condição mórbida. Condição mórbida de quê ou de quem? Da Língua. Começa assim o que é a Lição III: «Talvez nunca conheçamos a origem da praga.» Esta lição é verdadeiramente abundante em neologismos, todos eles riscados, uns criados com ironia e gozo pessoal, outros deixando a frase por acabar, em virtude da sua simples rejeição com um traço por cima, sem olhar ao que se seguiria.

Socorrendo-me  sempre da epígrafe de Francisco Rodrigues Lobo para cada conto, como chave necessária para ler correctamente os textos, distingo Lição I, Maqamat al-Usbuna, passado no tempo  do  Al-Andaluz e da Reconquista  Cristã, sob o ponto de vista moslém, como, imagino, escreveria LMR com um sorriso, em vez de muçulmano, conto em que o Cultismo surge de forma exacerbada e caricatural; Lição IV, Abaporu  (ou seja, antropófago, em tupi-guarani), passado no Brasil do século XVIII, entre colonos, aventureiros, homens de armas, negreiros, missionários, índios inadaptados à escravatura e escravos africanos; Lagor, Vogais, Tull decorre em Lisboa deste nosso tempo. Um diálogo em linguagem vulgar, levada ao extremo de palavras e frases incompletas, entre duas personagens que esperam pelos serviços mínimos do metro em tempo de greve; Balanço A Meio do Século, solilóquio, digamos assim, de um inquisidor do Tribunal do Santo Ofício, já retirado, no tempo imediato ao Terramoto de Lisboa de 1755, em plena devastação da cidade. Finalmente Lição VIII, Nereida, recriação do episódio da Ilha dos Amores, de Os Lusíadas, a que não falta a ironia e uma prosa provocante, escrita com um acento antigo e inçada de rimas. Deixou-se para trás Lição VI, Ó Tina, que versa o caso de um poetastro, porque de certo modo seria repetir a Lição II, mas sem o relâmpago criativo que é esse não micro-conto. No entanto, pela sua absurdez e evidente prazer do autor, não deixo de sublinhar, desse conto, Sextina Às Trevas, perfeita na forma e risível na monorrima, repetindo sessenta e nove vezes o hiato ia, entre rimas externas, que são trinta e nove, e internas, trinta, distribuídas por seis estrofes de seis decassílabos mais um terceto final, como é devido às sextinas, tudo cuidadosamente correcto, à semelhança dos quatro sonetos presentes nesta Nova Arte de Conceitos, formas clássicas que, exceptuando Nota do Autor na abertura, servem apenas a irrisão presente na Lição VI, Ó Tina.

Um livro culto, sem dúvida diferente e trabalhoso de ter sido feito, que os amantes da Língua, e não só, devem ler sem pressa, sublinhando, apontando, procurando, pois só se ganhará com isso. Poderá ser por esse motivo que ao título de cada conto se junta outro, Lição. E se não o for para o autor, pode muito bem sê-lo para nós.


Nuno Dempster


 
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